sexta-feira, 8 de julho de 2011

A vingança de Gaia

O futuro em nossas mãos

Leonardo Boff: mudar as mentes, mudar o mundo

ENTREVISTA
Leonardo Boff: mudar as mentes, mudar o mundo
A questão ambiental vai adquirindo uma prioridade incontornável para a própria sobrevivência do planeta. Boff acredita que superar esse momento significa superar o capitalismo, mas as condições políticas não estão dadas para essas mudanças. Cada um tem suas responsabilidades e cabe às igrejas sensibilizar os fiéis
por Silvio Caccia Bava
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Como tratar o tema do aquecimento global e dos seus efeitos, especialmente nas cidades brasileiras, olhando para esse modelo de desenvolvimento?
 
LEONARDO BOFF – Eu creio que o governo do PT deve acumular mais consciência crítica sobre essas questões para poder reformular políticas que sejam adequadas às novas situações da Terra. Nós não estamos apenas dentro de uma crise, nós estamos dentro de uma irreversibilidade, isso é, a Terra mudou, nunca mais será como antes, pouco importa o que façamos. Dentro de alguns anos a Terra vai se aquecer pelo menos em dois graus Celsius, dada a acumulação já existente de dióxido de carbono, de metano e outros gases. E isso vai ter consequências desastrosas para todos os seres vivos que não conseguirem se adaptar, e também para nós, seres humanos, se não conseguirmos estratégias de evitar as consequências prejudiciais.
 
O que falta é um conceito, é uma visão nova do mundo. Na verdade, o Projeto de Aceleração do Crescimento, o PAC, ele se remete ao século IX, nem entrou no século XX, porque ele trata a natureza como um baú de recursos e uma grande lixeira onde nós jogamos os dejetos. O PAC não estabeleceu uma relação de sinergia, de respeito aos ciclos da natureza, de aplicações de tecnologias adequadas a cada ecossistema. É o mesmo modelo para a Amazônia, para o Pampa, para o Centro-Oeste, para o Nordeste e isso, teoricamente, é um erro fundamental.
 
Dada a sua dimensão geológica, geoecológica, dada a riqueza dessa natureza brasileira com as grandes florestas úmidas, abundância de água e as maiores terras cultiváveis do mundo, é preciso que esses fatores que são decisivos para que a Terra encontre aqui um novo equilíbrio que seja bom para a vida. E essa visão eu vejo ausente no governo.
 
DIPLOMATIQUE – Quais são os riscos que nós estamos expostos pela ausência dessa visão?
 
BOFF – Esses bilhões que estão sendo investidos agora podem ser que, daqui a 15, 20 anos, sejam totalmente perdidos. É que nós teríamos destruído aquelas bases ecológicas, físico-químicas, florestais, que serão fundamentais para a humanidade.
 
A importância da água doce, a escassez da água potável, talvez seja, no plano imediato, mais grave que o aquecimento. E o Brasil é a potência das águas, 13% de todas as águas doces do mundo fluem aqui no Brasil. O risco é que nós não possamos oferecer mais esse bem da natureza, que é mais do que um recurso que vai para o mercado, é um bem da natureza, um serviço.
 
Outro risco é se houver um cruzamento entre o aquecimento global e a escassez de água. Poderá haver uma destruição de safras de ordem inimaginável, produzindo então fome, milhões de refugiados climáticos, refugiados por falta de água. Tudo isso o Brasil pode ajudar a equilibrar, mas precisamos de políticas responsáveis, com estratégias visando o futuro e fazendo frente aos cenários dramáticos, nossa atuação é indispensável para o equilíbrio do planeta e para as necessidades da humanidade.
 
DIPLOMATIQUE – Quais são as políticas que nós teríamos que adotar?
 
BOFF – A primeira coisa é fazer uma ampla discussão na sociedade brasileira – desde as escolas – sobre o aquecimento global e que tipo de relação nós queremos estabelecer com a Terra. Nós precisamos produzir para atender às demandas humanas, mas também atender às demandas da comunidade de vida, porque não somos os únicos que utilizamos a biosfera e precisamos da biodiversidade para sobreviver. Nós precisamos compreender a Terra como uma grande mãe; ou como a nova astrofísica, a nova biologia, a terra como Gaia, como um superorganismo vivo; e o ser humano como uma parte pensante, a parte inteligente, a parte sensitiva desse fenômeno da Terra.
 
Não podemos sacrificar para gerações futuras a capacidade de reposição dos recursos que usamos. É preciso que haja um equilíbrio entre as possibilidades e os limites de cada ecossistema, de cada ecorregião, de cada bacia hidrográfica.
 
DIPLOMATIQUE – Nós temos um país que tem mais cabeças de gado do que brasileiros, como é possível compatibilizar tamanho rebanho, por exemplo, com um projeto sustentável?
 
BOFF – Não dá para compatibilizar, não há sintonia entre modo de produção capitalista e ecologia, são realidades que se contrapõem. Porque o modo de produção capitalista superexplora o meio ambiente, degrada os ecossistemas, exaure suas capacidades regenerativas em função da acumulação. Ou nós superamos o capitalismo como modo de produção, e a sua versão política que é o neoliberalismo, ou nós podemos levar ao desaparecimento da espécie humana, ao lado de outras tantas espécies.
 
DIPLOMATIQUE – Você visualiza ainda outras medidas possíveis para se enfrentar a crise ou essa é uma mudança cultural de longo prazo, como sinaliza essa sua resposta?
 
BOFF – Nós nem temos o tempo suficiente para educar toda a humanidade. Temos que articular todos aqueles ensaios que estão sendo feitos no mundo inteiro, que mostram que podemos produzir sem degradar, que podemos atender às demandas humanas, e da comunidade de vida, de mil maneiras diferentes.
 
O Fórum Social Mundial é o local onde essas experiências vem à tona. São as trocas de experiências de como guardar a semente, de como produzir de forma cooperativa, de como construir de maneira mais saudável, mil maneiras de produzir. Então o que nos falta é articular esses novos deuses que estão nascendo para que os velhos deuses possam desaparecer e morrer.
 
Eu acho que devemos aproveitar tudo das experiências humanas, das culturas, aquilo que vem debaixo, da agricultura familiar, das pequenas empresas, dos reservatórios de sementes, formas de preservar mais água etc. Isso é, tudo aquilo que é alternativo. Não podemos fazer mais do mesmo, só que com doses diferentes, seria cair na ilusão de que “limando os dentes do lobo eu tiro a ferocidade dele, a ferocidade não está nos dentes, está no animal”. Esse animal está devorando a humanidade e a vida, ele tem que ser aposentado, e nós devemos buscar outra maneira de habitar o planeta.
 
Tem uma frase de Hegel que eu gosto de citar nesse contexto todo: aprendemos na História que o ser humano não aprende nada da História, mas aprende tudo com o sofrimento”. Hoje, nós temos já 60 milhões de refugiados climáticos no mundo. Em cinco a sete anos nós vamos ter entre 150 a 200 milhões, isso vai criar um problema político tal que vai desestruturar os limites das nações porque essas pessoas não vão aceitar o veredicto de morte.
 
DIPLOMATIQUE – Leonardo, você vai participar da abertura da campanha Primavera Para a Vida que a Coordenadoria Ecumênica de Serviços está empreendendo com esse tema da justiça ambiental. Na sua visão, qual é o papel das igrejas cristãs e das religiões nessa mudança de paradigma neste momento que vivemos?
 
BOFF – Eu acho que as igrejas têm que reconhecer que, se chegamos à situação de hoje, elas são cúmplices e são também culpadas, porque cometeram erros nos seus processos de socialização, de catequização, de formação das consciências religiosas. Essa perspectiva do ser humano como dominador levou à situação de hoje, então a Igreja e as religiões todas têm que fazer essa revisão. Elas não são a solução do problema, elas são parte do problema.
Em segundo lugar, elas têm uma função pedagógica importante, porque ensinam a reverência, o respeito, a adoração. Essa atitude de respeito, de veneração, tem que ser levada em todas as dimensões, porque é exatamente o respeito que impõe limites para o poder devorador, devastador, e isso as religiões podem fazer.
 
Essa é a tese do meu último livro A criação, que é uma carta aberta às religiões propondo uma aliança entre as duas grandes forças que são decisivas para a vida: a força da tecnociência, que transforma o mundo, e as forças das religiões, que transformam as mentes.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Alguns conceitos de Educação Ambiental

Alguns conceitos de educação ambiental
1) Lei n° 9.795, de 27 de abril de 1999.
Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências.


DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Art. 1º Entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade.

Art. 2º A educação ambiental é um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal.

Art. 3º Como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito à educação ambiental, incumbindo:

I - ao Poder Público, nos termos dos arts. 205 e 225 da Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente;

(...)

V - às empresas, entidades de classe, instituições públicas e privadas, promover programas destinados à capacitação dos trabalhadores, visando à melhoria e ao controle efetivo sobre o ambiente de trabalho, bem como sobre as repercussões do processo produtivo no meio ambiente.

2) “Consideramos que a educação ambiental para uma sustentabilidade eqüitativa é um processo de aprendizagem permanente, baseado no respeito a todas as formas de vida. Tal educação afirma valores e ações que contribuem para a transformação humana e social e para a preservação ecológica. Ela estimula a formação de sociedades socialmente justas e ecologicamente equilibradas, que conservam entre si relação de interdependência e diversidade. Isto requer responsabilidade individual e coletiva em nível local, nacional e planetário. Consideramos que a preparação para as mudanças necessárias depende da compreensão coletiva da natureza sistêmica das crises que ameaçam o futuro do planeta. As causas primárias de problemas como o aumento da pobreza, da degradação humana e ambiental e da violência podem ser identificadas no modelo de civilização dominante, que se baseia em superprodução e superconsumo para uns e subconsumo e falta de condições para produzir por parte da grande maioria.

Consideramos que são inerentes à crise a erosão dos valores básicos e a alienação e a não-participação da quase totalidade dos indivíduos na construção de seu futuro.” (fonte: Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global)

3) “Processo em que se busca despertar a preocupação individual e coletiva para a questão ambiental, garantindo o acesso à informação em linguagem adequada, contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência crítica e estimulando o enfrentamento das questões ambientais e sociais. Desenvolve-se num contexto de complexidade, procurando trabalhar não apenas a mudança cultural, mas também a transformação social, assumindo a crise ambiental como uma questão ética e política."

terça-feira, 14 de junho de 2011

ECOLOGIA E ESPIRITUALlDADE


A Carta da Terra, um dos documentos éticos mais consistentes dos últimos anos e já assumido peta Unesco representa a nova consciência ecológica da Humanidade, O texto abre com estas palavras dramáticas:
Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a Humanidade deve escolher o seu futuro... ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida.

Esse alarme não é infundado, pois nas últimas décadas temos construído o principio da autodestruição. A máquina de morte das armas nucleares, químicas e biológicas é de tal destrutividade que somente com uma porcentagem delas podemos danificar substancialmente a biosfera e abortar o projeto humano. Como espécie Homo sapíens et demens - temos ocupado já 83% do planeta, explorando para nosso proveito quase todos os recursos naturais. A voracidade é tal, que temos depredado os ecossistemas a ponto de a Terra ter superado já em 20% sua capacidade de suporte e regeneração. Mais ainda, fizemo-nos reféns de um modelo civilizatório depredador e consumista que, se universalizado, demandaria três planetas semelhantes ao nosso. Evidentemente isso é impossível, o que comprova a falta completa de sustentabilidade de nosso modo de produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Não são poucos os analistas do estado da Terra que advertem: ou mudamos de padrão de relacionamento com a Terra ou vamos ao encontro do pior.

A URGÊNCIA DA ESPIRITUALIDADE NA CRISE ATUAL
É nesse contexto dramático que surge a urgência da espiritualidade. Ela possui um valor em si, independentemente das conjunturas históricas, como essa descrita acima. Mas, atualmente, em situação de alto risco, parcamente conscientizado pela maioria dos seres humanos, ela é invocada urgentemente, pois representa uma das fontes secretas de um novo modo de ser que nos poderá salvar. Por que, exatamente, a espiritualidade? Porque em seu seio, normalmente, irrompem os grandes sonhos para cima e para frente, sonhos que podem inspirar práticas salvacionistas. Notáveis antropólogos, como Claude Lévi-Strauss e C. Geertz, têm afirmado que quando um paradigma civilizatório entra em crise, quando as estrelas-guias se obnubilam e o horizonte de esperança de um povo perde sua capacidade de gerar sentido, emerge, irreprimivelmente, a espiritualidade. É o que ocorre hoje, praticamente, em todas as culturas e no mundo inteiro.
Que significa aqui a espiritualidade? Sem detalharmos a resposta que surgirá logo a seguir, espiritualidade é uma nova experiência do ser, o irromper de um novo sonho, o vislumbrar de uma outra ordem, capaz de ordenar o caos que se instalou. Trata-se aqui de uma experiência de sentido novo, e não de um saber codificado. Tudo o que tem a ver com a experiência profunda do ser humano, com seu mergulhar nas raízes últimas da realidade, antes que esta se organize em ordem e sistema, em saber e instituição, constitui o campo da experiência do espírito, donde vem espiritualidade. Espírito representa a força criadora e ordenadora presente no ser humano, a capacidade de rasgar sentidos novos a partir das virtualidades presentes na própria realidade. Desta experiência espiritual nascem os paradigmas civilizacionais, capazes de fazer outra história e suscitar esperança às comunidades humanas e às pessoas.
Normalmente, a espiritualidade encontra seu nicho natural no seio das religiões. Elas nascem da experiência espiritual do fundador, do profeta e do carismático. No seio delas se elaboram as grandes utopias da Humanidade, visões de um sentido que transcende a fugacidade dos tempos e alcança a transcendência e a eternidade. Em épocas de crise, constituem elas o húmus fértil de novas perspectivas. São elas que permitem a passagem de um paradigma a outro, mantendo o continuum da história humana.
Mas a espiritualidade não configura monopólio das religiões, embora sejam o campo privilegiado de sua emergência e expressão. A espiritualidade representa uma dimensão do profundo humano. Ela pertence estruturalmente ao ser humano com o mesmo direito de cidadania como o poder, a sexualidade, a racionalidade e o enternecimento Por isso ela emerge nas pessoas mesmo que estas não tenham nenhuma inscrição religiosa definida. Esta espiritualidade antropológica deverá ser evocada quando abordarmos o tema da espiritualidade e da ecologia.
Por fim, há de se superar o antropocentrismo, tão visceral em nossa cultura. A espiritualidade se dá nas religiões e em cada ser humano, mas ela vai além, se encontra também na própria estrutura do universo. O espírito está em nós porque, anteriormente, está no universo, do qual somos parte e parcela. A Carta da Terra alude a isso quando se refere ao nosso "parentesco com toda a vida" e ao "mistério da existência", em face do qual cabe nossa "reverência, humildade e gratidão”.
Em nossa exposição obedeceremos à seguinte estratégia: em primeiro lugar, consideraremos a contribuição da espiritualidade de fundo religioso para a preservação ecológica; em segundo lugar, nos acercaremos da espiritualidade antropológica e seu significado para a ecologia; e, por fim, a espiritualidade cósmica como derradeira atitude de benevolência e comunhão com toda a realidade.

A ESPIRITUALIDADE RELIGIOSA: O MUNDO É SACRAMENTO
As religiões todas vêem a realidade sub specíe aetemítatís (na perspectiva da eternidade), vale dizer, na ótica de Deus. Deus é experienciado como a Fonte originária de todo o ser. Ele é experienciado como criador, provedor e sustentador do céu e da terra e de tudo o que eles contêm. Ao criar, ele deixou marcas de seu gesto divino em todas as coisas. Todas são seus filhos e filhas. Ele não se deixa ver diretamente. Mas transparece em tudo que saiu dele. Por isso o universo, as estrelas, a imensa diversidade dos seres, especialmente os vivos e entre eles os seres humanos, comparecem como sacramentos de Deus. Vale dizer, são sinais de sua inefável presença e instrumentos de sua atuação no mundo. Ele não tem senão nossos braços para mover o mundo humano.
Para a pessoa religiosa, tudo vem perpassado de energias divinas, como o testemunham tão bem as religiões afro-brasileiras entre outras. Em face delas, se impõem a reverência, o respeito e a devoção. Deus está presente no mundo e o mundo em Deus, sem distância e mediação. É o que a teologia cristã chama de panenteísmo e que outras tradições conhecem por termos equivalentes. Mas importa não confundir panenteísmo com panteísmo. No panteísmo, tudo, indiferenciadamente, é Deus: os objetos, as montanhas, cada pessoa. No panenteísmo se mantém a diferença irredutível (um é Criador e o outro é criatura), mas se acentua a mútua presença e a interpenetração.
Na teologia cristã se prolonga esta intuição com a fé na encarnação de Deus. Ele assumiu o ser humano e, através dele, de alguma forma, todas as coisas. Elas começam a pertencer a Deus. Deus se faz ser humano para que ó ser humano junto com todo o universo se faça Deus. Tal evento confere uma dignidade inaudita a cada criatura, pois comparece corno lugar onde Deus mesmo pode ser encontrado.
Diz-se também que o Espírito penetrou a criação, vitalizando-a e conduzindo-a rumo a sua culminância bem-aventurada, quando explodirá e implodirá para dentro de Deus. Uma antiga tradição transmitida pelos místicos da Igreja Ortodoxa grega diz: "O Espírito dorme na pedra, sonha na flor, acorda nos animais e sabe que está acordado nos seres humanos." Ele é o Spírítus Creator
Esta é a compreensão dos professantes da fé cristã. Isso, entretanto, não é ainda espiritualidade, mas doutrina. A espiritualidade surge quando a doutrina deixa de ser doutrina e passa a ser experiência interior, quando passa do intelecto para o coração. Então ela se transforma em comoção e celebração Não basta dizer que todos os seres são filhos e filhas de Deus. Para fazer surgir a espiritualidade, importa sentir essa verdade, abraçar a cada ser, cuidar dele como se cuida de um ente querido. Foi o que vivenciou Francisco de Assis com sua mística cósmica. Abraçando o mundo, ele estava abraçando Deus e vendo-o na lesma do caminho, no irmão Sol e na água cristalina. .
Essa experiência é carregada de conseqüências ecológicas. Precisamos de reverência e cuidado em face de cada ser. Aí descobrimos a fraternidade e a sonoridade universais. Só assim pomos limites à nossa voracidade e regressamos à comunidade terrenal e cósmica da qual nos exilamos.

ESPIRITUALlDADE ANTROPOLÓGICA: O PONTO DEUS
O ser humano possui, em primeiro lugar, exterioridade expressa pelo corpo. Mediante ele, somos parte do universo, compostos com os mesmos elementos físico-químicos que as estrelas, e nos fazemos presentes uns aos outros. Em segundo lugar, o ser humano possui também interioridade expressa pela nossa psique. É o universo de desejos, emoções, imagens poderosas, arquétipos, idéias, visões de mundo que estão dentro de nós. Ao captarmos pelos sentidos corporais e espirituais ou pela intuição as coisas, elas são internalizadas e se transformam em imagens e símbolos. Elas falam e nós podemos captar sua mensagem. A montanha não é apenas montanha. Ela nos evoca majestade. O mar encapelado não é apenas mar. Ele nos faz entender o que é a violência indomável. Os olhos de uma criança não são apenas olhos. Eles revelam o mistério e a profundidade da vida. A pessoa amada, já o dizia Freud, é sempre também a pessoa imaginada, idealizada e transfigurada.            .
Nós não existimos senão que coexistimos, sempre junto com outros seres com os quais mantemos relações de troca e de inter-retro-dependência. Nosso eu não fica recluso em si mesmo, mas ele é habitado pela casa que habitamos, pela rua familiar em que moramos, pela cidade natal em que vivemos, pelo local de trabalho onde exercemos nossa profissão, pelos animais domésticos, pelas paisagens inesquecíveis de nossa história pessoal, pela pátria que amamos e pela Terra, a única Casa Comum que temos para habitar. Essas realidades não são meros fatos, são valores, o mundo das excelências. Sem eles morre ríamos de esterilidade e de solidão.
O ser humano possui também profundidade. Só ele coloca questões terminais, sempre presentes na agenda humana: de onde viemos, para onde vamos, que estamos fazendo aqui no mundo, que podemos esperar depois desta vida, por que sofremos com a traição do amigo e choramos tanto com a morte da pessoa querida? O que se esconde por detrás das estrelas? Qual é o fio condutor que tudo sustenta e faz com que o universo não caia sobre nossas cabeças, mas surja como harmonia sutil que encantou os salmistas como Davi e fascinou cientistas como Einstein? Por que o ser humano é perpassado por uma ânsia infinita de felicidade e de vida sem fim? Ele identificou na evolução cósmica aquele Vazio fecundo, aquele Estado de energia insondável de fundo, do qual tudo promana, a presença do Mistério que cerca todas as coisas, que as culturas humanas chamaram de Deus. Com Ele pode se relacionar na oração, que é um dialogar e intercambiar amorosamente com Deus. Pode entregar-se à meditação pela qual escuta o que Ele tem a dizer. Quando tais eventos bem-aventurados surgem, aparece aquilo que é a dimensão do profundo do ser humano, aquilo que chamamos espírito. Especialmente aparece o espírito quando na nossa consciência nos sentimos parte e parcela do Todo que nos desborda. E quando emerge em nós a responsabilidade pelo mundo ao nosso derredor, damo-nos conta de que podemos ser o Satã da Terra, bem como seu anjo bom e protetor. Somos chamados a ser o jardineiro que cuida e completa a obra deixada incompleta por Deus. É então que irrompe em nós a dimensão ética, de cuidado e responsabilização pelas coisas ao nosso redor. Espiritualidade consiste em cultivar esse espaço de profundidade, em enriquecer o centro de nós mesmos, em alimentar a dimensão do espírito com a amorosidade. a solidariedade, a compaixão, o perdão e o cuidado para com todas as coisas. Por tais valores e atitudes se revela o espírito e se urde a espiritualidade. Quando vivemos esta espiritualidade nos sentimos engrandecidos.e.nos descobrimos como projeto infinito. Somente o Infinito pode saciar nossa fome infinita.
Pesquisas recentíssimas, do final do século 20, feitas por neuropsicólogos (Michael Persinger e V. S. Ramachandran), por neurologistas (Wolf Singer. por neurolingüistas (Terrance Deacon) e por técnicos em magnetoencefalografia, detectaram o que foi chamado o "ponto Deus" no cérebro. Sempre que se abordam as questões espirituais elencadas acima verifica-se empiricamente uma excitação nos lobos frontais do cérebro. Esses lobos frontais estão ligados ao cérebro límbico, o centro das emoções e dos valores. Isso significa que a percepção do "ponto Deus" está vinculada não a uma idéia, mas a um fator emocional e experiencial, como dizíamos, à espiritualidade. Esse "ponto Deus" surgiu no processo cosmogênico e antropogênico para atender a um propósito evolutivo: captar e conscientizar, através do ser humano, a presença de Deus na dinâmica universal e em cada coisa. É no ser humano que irrompe esta consciência de Deus e do Sagrado. É nele que se elabora a espiritualidade. Em razão disso, afirmam estudiosos como a física quântica Danah Zohar e o psiquiatra lan Marshall que nos seres humanos não vigora apenas a inteligência intelectual e a inteligência emocional, mas também a inteligência espiritual.
Transformando esse dado objetivo, a inteligência espiritual, em projeto consciente, reforçamos a espiritualidade como dimensão central de uma vida aberta, sensível, atenta às múltiplas dimensões do humano. Esta espiritualidade nos leva a cuidar da vida em rodas as suas formas porque vemos nelas excelência e valor. Tudo que existe merece existir. Tudo que vive merece viver. Ela nos ajuda a superar a perigosa lógica do interesse, dominante hoje, pela qual dominamos e nos apropriamos das coisas para o nosso uso e desfrute. Ela nos facilita a darmos lugar à lógica da convivência, da cordialidade, da reverência em face da" alteridade e da comunhão com todas as coisas e com Deus. A integração da inteligência espiritual às outras duas formas de inteligência (a intelectual e a emocional) nos abre à comunhão amorosa com todas as coisas, numa atmosfera de respeito e de reverência para com os demais seres, a maioria deles muito mais ancestrais que nós, acolhidos como companheiros e companheiras na grande aventura terrenal e cósmica.

O UNIVERSO AUTOCONSCIENTE E ESPIRITUAL
Nas reflexões da moderna cosmologia e física quântica (como em David Bohm, lIya Prigogine, Danah Zohar, Brian Swimme, A Goswami e o!Jtros) se sustenta a tese segundo a qual a consciência e o espírito são fenômenos quânticos, que emergem do transfundo das infinitas virtualidades da Fonte alimentadora de tudo (vácuo quântico). Assim como nosso ser físico surgiu no processo cosmogênico, assim também nosso ser espiritual. Ambos são tão ancestrais como o universo. Por espírito se entende a capacidade das energias primordiais e da própria matéria de interagirem entre si, de se autocriarem (autopoiese), de se auto-organizarem, de se constituírem em sistemas abertos, de se comunicarem e formarem teias cada vez mais complexas de inter-retro-relações que sustentam o inteiro universo. O espírito é fundamentalmente relação, interação e auto-organização em distintos níveis de realização. Desde o primeiríssimo momento da explosão primordial criaram-se relações e interações, gestando unidades ainda rudimentares (dois quarks e prótons) que foram se organizando de forma sempre mais complexa. Era a alvorada do espírito. O universo é cheio de espírito porque é reativo, pan-relacional e criativo, Nesse sentido não há seres inertes, à diferença de outros setes, chamados vivos. Todos participam, em seu grau, do espírito, da consciência e da vida. A diferença entre o espírito de uma montanha e o espírito humano não é de princípio, mas de grau. O princípio de interação e criação se realiza em ambos, apenas de forma diferente. O espírito humano é esse espírito cósmico que chega à autoconsciência, à fala e à comunicação consciente. O espírito que perpassa todas as coisas ganha uma concretização especial nos homens e nas mulheres.
Se o espírito é vida e relação, então o seu oposto não é matéria, mas morte, ausência de relação. A matéria é um campo altamente carregado de energia e de interações. Espiritualidade, neste contexto, é a potenciação máxima da vida, é compromisso com a proteção e expansão da vida. Não apenas da vida humana, mas da vida em toda a sua incomensurável diversidade e em todas as suas fases de realização.
Vivenciar o universo como vivente, a Terra corno Gaia, superorganismo vivo e Grande Mãe, sentir a natureza como fonte de irradiação vital e comungar com cada ser que encontramos como portador de propósito, irmão e irmã de aventura nesse imenso universo, é mostrar -se um ser espiritual, é realizar a espiritualidade ecológica em grau eminente, hoje absolutamente necessário à sobrevivência da biosfera.
O futuro da Terra como um planeta pequeno e limitado, da Humanidade que não para de aumentar, dos ecossistemas fatigados pelo excessivo estresse do processo industrialista, das pessoas humanas, confusas, perdidas, espiritualmente embotadas mas ansiosas por formas de vida mais simples, transparentes, autênticas e cheias de sentido, esse futuro depende de nossa capacidade de desenvolvermos ou não uma espiritualidade ecológica. Não basta sermos apenas racionais e religiosos. Mais que tudo, temos que ser sensíveis uns aos outros, cooperativos em todas as nossas atividades, respeitadores dos demais seres da natureza; numa palavra, devemos ser espirituais. Só então irradiaremos como seres responsáveis e benevolentes com todas as formas de vida, amantes de nossa Mãe Terra e veneradores da única Fonte donde promana todo ser e toda bem-aventurança.

Leonardo Boff